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Três histórias e um destino

No carnaval de 1970 Lucio estava exultante, não só por causa do carnaval, mas também por seu ingresso no curso de engenharia da Universidade do Brasil.
A impetuosidade da juventude, no entanto, o impeliu em busca de alegrias na artificialidade do lançaperfume – líquido composto por éter, clorofórmio, acetona e essência de perfume. Esta mistura que é estocada em tubo de alta pressão, quando acionada por um gatilho, borrifa o líquido volátil para longe.
No carnaval dos inocentes o lança-perfume era usado para borrifar as costas desnudas das mocinhas, e a sua volatilidade causava um impacto gelado em suas peles, gerando exclamações. Dependendo do tipo de exclamação iniciava-se a paquera. Boa parte dos foliões, inclusive Lúcio, usava o lança-perfume para cheirar em busca de excitações. Naquele início de noite, Lúcio empapou seu travesseiro com o líquido perfumado e nele afundou o seu rosto. Minutos seguintes perdeu a consciência e morreu. A necropsia revelou que a causa da morte havia sido por acidente vascular cerebral, com entupimentos vasculares formados por aglomerados de eritrócitos falcizados.
Ursão era o apelido de um jovem médico por conta de sua notável pelagem peitoral. Apaixonado por caça submarina, se dirigia frequentemente para o
litoral norte de São Paulo onde mergulhava em suas águas mornas. Em julho de 1973 foi conhecer as praias de Santa Catarina, onde as águas geladas daquele mar causaram-lhe o acidente fatal. No dia em que fez o primeiro mergulho, ele não retornou à superfície.
Cinco horas depois, os bombeiros o resgatou do fundo do mar. A necrópsia em seus órgãos mostraram entupimentos vasculares por aglomerados de
eritrócitos falcizados.
Numa noite de agosto de 1975 Matilde sentiu imensas dores em seu abdome. Foi levada para a urgência do Hospital das Clínicas de Botucatu.
Constataram apendicite aguda e decidiram fazer a cirurgia naquela mesma noite, com anestesia geral.
Recebeu suporte de oxigenação somente durante o ato cirúrgico. Tudo ocorreu bem, mas ao finalizarem o procedimento, o equipamento de oxigenação foi removido. Vinte minutos depois, ela teve convulsão e morreu. Os resultados da necropsia revelaram oclusões vasculares em quase todos seus órgãos causados por agrupamentos de eritrócitos falcizados.
Estas três histórias fizeram parte do início da minha vida profissional. As duas primeiras eu as soube através de médicos do Instituto de Hematologia do Rio de Janeiro e do Hospital São Paulo, respectivamente.
A história de Matilde eu vivenciei como estagiário do laboratório de Hematologia do Hospital das Clínicas de Botucatu.
Os três protagonistas desta história eram aparentemente saudáveis, mas tinham o gene da doença falciforme na forma heretozigota (Hb AS), coexistindo, portanto, dentro de seus eritrócitos, a HbS (uma mutante da Hb A) em associação com a Hb A (consultar  ww.hemoglobinopatias.com.br).
Porém, todos os três desconheciam que portavam esta anormalidade genética. Na Hb AS, a quantidade da Hb S nos eritrócitos é de 25 a 45%, e o restante do conteúdo de hemoglobinas é majoritariamente de Hb A normal. Quando os organismos destas pessoas sofreram supressões agudas de oxigênio, suas moléculas de Hb S se agruparam e se ligaram umas às outras, modificando as formas globulares dos eritrócitos para formas alongadas ou afoiçadas (ou falciformes). Esta deformação expôs receptores de membrana dos eritrócitos falcizados, e os grudaram às paredes dos vasos sanguíneos formando trombos de células falcizadas, que interromperam a vascularização para tecidos e órgãos causando hipóxia e morte celular de tecidos e órgãos. Portanto, as fatalidades destas três histórias ocorreram por “queima” aguda do oxigênio corporal. No primeiro caso, a mistura volátil do lança-perfume consumiu rapidamente o oxigênio e causou a falcização dos eritrócitos; no segundo caso a morte do mergulhador se deu pelo aumento do metabolismo orgânico para reequilibrar a temperatura corporal nas águas geladas do mar com consumo de muito oxigênio, causando a falcização dos eritrócitos, maximizada pela vasoconstrição causada pela hipotermia; por fim, na cirurgia de Matilde ao retirarem o oxigenador logo
após o procedimento – pois não sabiam que ela era portadora de Hb AS – os restos dos produtos químicos voláteis do anestésico ainda consumiam oxigênio de seus eritrócitos, causando-lhe falcização maciça de seus eritrócitos.
Estes três destinos fatais determinaram minha escolha científica, e há cinquenta anos me tornei pesquisador em doenças falciformes.