Palestra Magna – Diagnóstico integrativo: um conceito para aprimorar a medicina laboratorial

Michael Neumaier, da Universidade de Heidelberg, destaca integração de dados, inteligência artificial e educação médica como pilares para o futuro

“Antes da terapia, os deuses tinham dado diagnóstico.” Foi citando o médico alemão Franz Volhard, que Michael Neumaier, MD, PhD, deu o tom da primeira Palestra Magna do 57º Congresso da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (CBPCML). O especialista também alemão abordou o tema “Integrative Diagnostics as a Concept for Improving Diagnostic Medicine”, destacando que a medicina diagnóstica moderna enfrenta um cenário fragmentado.

Por seu trabalho de vanguarda na integração de novas tecnologias aos processos laboratoriais e clínicos, Neumaier contribui para transformar a prática médica e melhorar o acesso a diagnósticos mais rápidos, precisos e personalizados. Sua visão de uma medicina mais integrada e tecnologicamente avançada está alinhada com a evolução dos cuidados de saúde modernos, especialmente em um mundo onde o uso de grandes dados e IA está se tornando cada vez mais crucial.

Neumaier relembrou pioneiros da medicina diagnóstica, como Joseph Scherer, Rudolf Virchow, Robert Koch, Paul Ehrlich e Ilya Mechnikov, que atuavam de forma integrada, facilitando descobertas e cooperação. Ele comparou essa época com os laboratórios modernos, que lidam com grande volume de dados e testes automatizados.

“O médico recebe todas essas informações e precisa compilá-las em sua cabeça, então você pode imaginar quanto da informação se perde”, destacou ele – que é do Instituto de Química Clínica da Universidade Médica de Mannheim, vinculado à Universidade de Heidelberg – lembrando que humanos conseguem processar apenas cerca de seis dimensões ao mesmo tempo, evidenciando limites cognitivos frente à complexidade atual.


O especialista alemão também apresentou exemplos históricos de diagnóstico, como testes de testosterona em camundongos entre 1930 e 2010, mostrando que os primeiros diagnósticos se baseavam em poucos parâmetros antes da automação e do uso de biomarcadores sofisticados. Neumaier também ressaltou a relevância econômica da eficiência laboratorial: “os laboratórios representam cerca de 2% dos gastos em saúde na União Europeia, mas o uso ineficiente pode gerar desperdício de 25% desse valor”, apontou Neumaier.

O professor destacou a necessidade de integrar diferentes disciplinas, incluindo patologia, microbiologia, genética humana, radiologia e saúde digital, para enfrentar desafios como o envelhecimento populacional e a crescente prevalência de doenças não transmissíveis. “O conceito de diagnóstico integrativo não se limita à análise laboratorial, mas exige coordenação entre dados clínicos, tecnologia e interpretação médica, visando reduzir atrasos, erros de diagnóstico e desperdícios econômicos”, explicou.

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Sobre o uso de inteligência artificial, Neumaier apresentou experiências de seu centro em Mannheim, que em 2015 lidava com 1,7 milhão de pacientes, 6,5 milhões de casos e 20 milhões de diagnósticos. “Isso é realmente algo em que precisamos focar”, afirmou, reforçando que a integração de dados de diferentes disciplinas e sistemas de TI permite fornecer uma resposta otimizada ao clínico.

Ele complementou: “A qualidade do produto, eu sugeriria, depende da qualidade das perguntas feitas. Se as perguntas vêm de diferentes disciplinas, a produtividade também será diferente”.


No contexto do câncer, Neumaier destacou a fragmentação atual dos diagnósticos e defendeu o uso do liquid profiling ou biópsia líquida, que analisa células tumorais circulantes ou ácidos nucleicos no sangue. “É muito útil e permite integrar diferentes informações, mas não sei quão popular ou integrado isso é no Brasil”, disse. Ele apresentou estudos de melanoma com 630 pacientes, mostrando como abordagens integrativas podem melhorar o manejo clínico, e ressaltou que, no câncer colorretal, a detecção de recaídas por ctDNA permite reduzir em até 50% a quimioterapia desnecessária: “Para o paciente, o ctDNA guia, você salva 50% de quimioterapias se tratar o paciente de acordo com o resultado de ctDNA, em vez do padrão de cuidado”.

Neumaier também abordou doenças neurológicas, destacando a esclerose múltipla como exemplo de integração diagnóstica. Biomarcadores como neurofilament light chain (NFL) permitem monitorar o progresso da doença e avaliar a atividade inflamatória, sendo considerada “a troponina do neurologista”. Ele reforçou que a combinação de múltiplos biomarcadores e modalidades de imagem aumenta significativamente a eficiência diagnóstica.

O professor apresentou tecnologias, como o O-Link, capaz de medir simultaneamente até 5.400 proteínas em apenas 20 microlitros de sangue, permitindo análises imunológicas complexas e integradas, ampliando o potencial do diagnóstico integrativo em diversas doenças. Neumaier enfatizou ainda a importância das perguntas clínicas e da educação médica: “Se a questão não é boa, a qualidade do diagnóstico não pode ser muito boa”. Ele ressaltou que a inteligência artificial é instrumental, mas depende de receber perguntas clínicas significativas, e não apenas códigos de exames: “Se queremos ser integrados, precisamos convencer os clínicos a nos dar as perguntas, e não apenas os códigos de barras”, reforçou. 

Por último, Michael Neumaier destacou a educação médica na Universidade de Heidelberg, onde os alunos aprendem bioquímica e fisiologia com foco aplicado. “Eu ensino como a bioquímica muda se você tiver um problema clínico, e então eles começam a pensar diferente sobre isso”, disse, mostrando que a formação de médicos que compreendem o processo diagnóstico é essencial para o avanço do diagnóstico integrativo: “O processo educacional também ensinará os futuros clínicos, que esperamos que vejam a profissão de forma diferente do que veem hoje”, finalizou. 

A abertura da Palestra Magna foi feita pelo diretor de Relações Institucionais da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica Medicina Laboratorial (SBPC/ML), Wilson Scholnik, destacando que a integração diagnóstica é justamente o tema de 2025 do CBPC/ML.

Curiosidade
A frase “Antes da terapia, os deuses tinham dado diagnóstico” é atribuída a Franz Volhard,  importante médico e psicanalista alemão, conhecido por seu trabalho sobre a psicologia e suas relações com a mitologia e a religião. Volhard usou essa frase para refletir sobre a maneira como, em tempos antigos, o diagnóstico e o tratamento de doenças psicológicas ou espirituais eram muitas vezes atribuídos aos deuses, por meio de oráculos, rituais e outras formas de interpretação espiritual. Antes da psicanálise e das terapias modernas, os problemas psíquicos eram frequentemente vistos como manifestações de forças sobrenaturais, que poderiam ser diagnosticadas por meio de mitos, símbolos e rituais religiosos.