Testes rápidos de diagnóstico laboratorial em farmácias e a saúde pública
O diagnóstico laboratorial é um dos campos da saúde em que se observou um dos maiores avanços tecnológicos nos últimos vinte anos. Novos biomarcadores, métodos moleculares, automação analítica, rigoroso controle da qualidade e adoção de tecnologia de informação modificaram o perfil do laboratório clínico, reforçando o seu protagonismo no cuidado à saúde das pessoas.
No contexto destas inovações tecnológicas foram desenvolvidos os testes point-of-care, também conhecidos como teste rápido (TR). Em geral, os TRs são um importante avanço no enfrentamento de crises de saúde como surtos, pandemias e endemias, especialmente quando utilizados em locais de difícil acesso. São também importantes como uma estratégia de triagem ou como apoio ao autocuidado em situações específicas como a covid-19 hepatites e aids. Ressalte-se que, na quase totalidade das vezes, a realização de um TR no Brasil está inserida no conjunto de ações do sistema único de saúde (SUS), cuja estrutura deve promover a resolução diagnóstica e a adequada prescrição terapêutica.
Por outro lado, o uso de um TR, de forma indiscriminada, numa ação isolada e desconectada de um sistema de saúde resolutivo capaz de proporcionar a prevenção, diagnóstico e tratamento, resultará em graves consequências para saúde individual e coletiva.
Destaque-se que os laudos laboratoriais, sejam eles gerados a partir de um TR ou por meio de tecnologias laboratoriais de maior complexidade e acurácia, são componentes de um conjunto de evidências que define o diagnóstico, não sendo, portanto, o diagnóstico em si. O laudo laboratorial, combinado com a anamnese e os demais exames auxiliares, gera o suporte para que o profissional de saúde elabore uma hipótese diagnóstica e estabeleça a terapia mais adequada.
A realização dos TRs nas farmácias, conforme previsto na Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 786 da ANVISA abrirá um espaço de precariedade/iniquidade, prejuízo econômico e danos à saúde em geral.
A hipótese da precariedade deve-se ao uso de plataformas de triagem (baixa acurácia) sem um controle de qualidade ou conformação por testes de maior complexidade metodológica. Além disso, quando o resultado de um TR for usado equivocadamente como um diagnóstico definitivo poderá promover o erro ou retardo do diagnóstico correto, além de estimular a automedicação ou uso irracional de medicamentos.
O prejuízo econômico e a promoção da iniquidade ocorrem a partir do repasse do ônus do diagnóstico laboratorial para a população, em particular aquela com maior vulnerabilidade social. O que claramente que se contrapõe aos princípios do SUS.
O alto risco de danos à saúde, seja coletivo ou individual, é evidente. Para o indivíduo, possibilita a geração de um diagnóstico precário, sem a necessária resolutividade junto ao risco de agravamento da enfermidade. Para a saúde coletiva, coloca-se em risco o monitoramento de doenças de notificação compulsória e/ou de endêmicas, dificultando o controle destas doenças e o planejamento estratégico dos órgãos de saúde pública para a aquisição e distribuição de insumos laboratoriais, medicamentos, vacinas, equipamentos de proteção, entre outros.
A liberdade de escolha, aumento da possibilidade de acesso à saúde e potencialização do autocuidado tem sido os argumentos apresentados para a realização irrestrita dos TRs nas farmácias. Entretanto, são escassas as evidências científicas sobre os benefícios desta estratégia para a saúde pública. Da mesma maneira, são raros, se existentes, os exemplos do uso de TRs, da forma em que foi autorizada pela ANVISA, em países similares ao Brasil, seja quanto ao sistema público de saúde como quanto ao perfil socioeconômico e educacional da população.
O TR, não é, em si, ruim ou bom. A forma de utilização e os impactos de qualquer tecnologia é que definem quais são os benefícios ou prejuízos relacionados ao seu uso. O Ministério da Saúde deverá promover um rigoroso monitoramento e vigilância dos implementação dos TRs nas farmácias, avaliando os impactos resultantes desta prática.
Do contrário, estaríamos cometendo o erro de adotar estratégias de saúde pública que estejam desconectadas de evidências científicas, gerando um dramático dano a população, como vimos recentemente na COVID-19.
Pedro E. Almeida da Silva
Farmacêutico-Bioquímico
Professor Titular da Universidade Federal do Rio Grande