Anúncio feito na Conferência Estadual de Ciência e Tecnologia expressa uma possibilidade de nacionalização de tratamentos médicos. Também foram debatidas no evento questões relacionadas à saúde mental e inteligência artificial
Carlos Fioravanti | Revista Pesquisa FAPESP – No último dia dia15 começou em Ribeirão Preto (SP), interior paulista, a seleção de pessoas com leucemia interessadas em participar de um teste de avaliação de segurança e eficácia de uma das formas de terapia celular chamada de CAR-T (sigla de receptor quimérico de antígeno; o T se refere aos linfócitos T, um grupo de células brancas do sangue).
Desenvolvida nos Estados Unidos em 2017, e, no Brasil, desde 2019, pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) em colaboração com o Instituto Butantan e apoio da FAPESP (projetos 13/08135-2 e 14/50947-7), essa técnica consiste na retirada de linfócitos do próprio paciente, que são manipulados em laboratório e reaplicados no organismo. O objetivo é preparar os linfócitos para identificar e eliminar células tumorais que não foram detidas por outras terapias medicamentosas (leia mais em: agencia.fapesp.br/31656 e agencia.fapesp.br/38914).
O médico hematologista Diego Clé, da FMRP-USP, anunciou o teste e expôs suas expectativas com essa forma de terapia celular na última quinta-feira (07/03) durante a sessão “Grandes desafios na área da saúde” na Conferência Estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação (CECTI), que termina sexta-feira (08/03) na Secretaria Estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação, na capital paulista. O objetivo do encontro é preparar as sugestões e contribuições do Estado de São Paulo para a 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (CNCTI), que será realizada entre 4 e 6 de junho, em Brasília.
Diego Clé, da FMRP-USP (foto: Daniel Antonio/Agência FAPESP)
Com apoio da FAPESP e do Ministério da Saúde (MS), deverão participar da terapia CAR-T 81 pessoas com leucemia e leucemia linfoide aguda que não responderam a outras formas de tratamento. Os pacientes serão atendidos inicialmente no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto.
Clé comentou que 20 pessoas já foram tratadas previamente com as células preparadas no Núcleo de Terapia Celular Avançada de Ribeirão Preto (Nutera-RP, um Centro de Ciência para o Desenvolvimento da FAPESP), em alguns casos com bons resultados. “Essa forma de terapia celular pode mudar a forma de tratamento de leucemias resistentes, mas o custo é quase proibitivo para um país como o nosso”, comentou. O tratamento por paciente pode chegar a R$ 2 milhões, com medicamentos importados ‒ a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já aprovou três para uso no Brasil.
“O produto nacional vai custar um sexto do importado”, estimou o médico infectologista Esper Kallás, diretor do Butantan, em sua apresentação. Isso deverá ocorrer porque os custos de produção serão menores. “Sem esse tipo de solução, o SUS [Sistema Único de Saúde] quebra.” Kallás enfatizou a necessidade de expandir a produção de vacinas, medicamentos e insumos farmacêuticos no Brasil. “Temos infraestrutura e boas cabeças, mas ainda muitas travas burocráticas e dificuldade de dar continuidade aos investimentos”, afirmou.
Por sua vez, o psiquiatra Jair Mari, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ressaltou as perspectivas da saúde mental, outro tema debatido na tarde de quinta-feira. “Por causa do desmonte do sistema para cuidados imediatos e casos graves, mesmo em uma cidade como São Paulo haveria dificuldade para internar uma pessoa que teve uma crise aguda”, comentou. “Onde está a falha? Na falta de leitos em enfermarias de hospitais gerais.”
A seu ver, a prioridade das políticas públicas nessa área deveria ser a saúde mental na infância e adolescência, quando emergem os distúrbios mentais. “A depressão aparece na adolescência, principalmente entre meninas”, disse. Outra sugestão foi a disseminação dos programas de identificação e prevenção de transtornos mentais em escolas.
Durante a primeira sessão da tarde também fizeram apresentações Guilherme Polanczyk, do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, e a geneticista Carolini Kaid, da startup Vyro.
Impactos da IA
O sociólogo Fausto Augusto Jr., do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), falou na segunda parte da tarde, durante a sessão “Transição digital e inteligência artificial”. Ele comentou que a inteligência artificial (IA) amplia o impacto causado por outras grandes mudanças tecnológicas, como a indústria 4.0, ao intensificar a precarização do trabalho, flexibilizar a jornada e os contratos de trabalho, reduzir a oferta de empregos (principalmente os de tarefas repetitivas), enfraquecer organizações coletivas como os sindicatos e dificultar a construção de identidades profissionais.
“A IA, como antes as mudanças causadas pelo fogo, a agricultura e a indústria, tem o potencial de nos alterar como trabalhadores, cidadãos e seres humanos”, comentou. “Ampliaremos nossas desigualdades sociais se pensarmos que o mercado vai disciplinar a transição tecnológica.” Para ele, a negociação entre as empresas e os trabalhadores seria uma das formas de amenizar o impacto das novas tecnologias.
“Vivemos um momento de euforia excessiva na IA, parece que tudo vai dar certo, mas os programas ainda podem alucinar e passar informações falsas”, observou o engenheiro eletricista Fabio Cozman, da Escola Politécnica da USP. Ele foi um dos autores do documento “Recomendações para o avanço da inteligência artificial no Brasil”, lançado em novembro de 2023 pela Academia Brasileira de Ciências (ABC).
A seu ver, o projeto de lei sobre IA, em discussão no Congresso Nacional, “talvez seja excessivamente inflexível”, comentou. “Seria melhor deixar os próprios órgãos elaborarem suas políticas, como já fez o TSE [Tribunal Superior Eleitoral] para as eleições.”
A economista Dora Kaufman, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), por sua vez, propôs que o Estado de São Paulo deveria criar um órgão para liderar as propostas de regulamentação do uso da IA, diagnosticar as aplicações, os riscos para os usuários e criar uma espécie de “framework de governança”. Segundo ela, esse framework incluiria as informações a serem exigidas dos gestores de programa de IA e o monitoramento dos riscos para os usuários.
Outros palestrantes da segunda sessão da tarde foram o cientista da computação Anderson Rocha, do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e a analista de sistemas Maria Cristina Domingues, do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT).
O vídeo com as duas últimas sessões em: www.youtube.com/watch?v=cDRUhdyKs0U.
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