Um dia antes da aprovação do autoteste para Covid-19 pela Anvisa, o presidente da CBDL – Câmara Brasileira de Diagnóstico Laboratorial, Carlos Eduardo Gouvêa, detalha ao Labornews o atual cenário da testagem no país que vem batendo recordes de contaminação. Ele explica como o mercado está se preparando para atender a demanda por testes e como o Ministério da Saúde marcou passo em relação a liberação do autoteste que, segundo ele, vai ajudar na luta contra o avanço da pandemia.
César Hernandes
Carlos Eduardo Gouvêa, presidente da CBDL – Câmara Brasileira de Diagnóstico Laboratorial
Labornews – O “Programa Diagnosticar para Cuidar” criado pelo Ministério da Saúde em 2020 está atualizado para esse novo momento da pandemia?
Carlos Eduardo Gouvêa – O Ministério da Saúde tentou fazer uma série de atividades em função da pandemia, mas correu um pouco atrasado, mesmo tendo boas ideias. Podemos citar como exemplo este momento da discussão pela Anvisa sobre a liberação de uma resolução que determinará quais são os requisitos para o autoteste para a Covid-19 como ferramenta (a Anvisa aprovou o uso do autoteste em 28 de janeiro, um dia depois da realização da entrevista). Ela estava prevista para o dia 19 de janeiro, mas não ocorreu. Para surpresa de todos, não aconteceu por conta da Política Nacional de Saúde voltada à testagem e combate para a Covid-19 que, segundo a Anvisa, não estava satisfatória para incorporação do autoteste neste momento. Então, dentro da questão da testagem e de outras campanhas, existe uma desconexão entre o que o mercado precisa e o que o Ministério consegue oferecer.
Labornews – E qual foi a resposta do Ministério da Saúde à Anvisa?
Carlos Eduardo Gouvêa – O Ministério da Saúde fez uma revisão completa do Programa Nacional de Testagem desde o início da pandemia. Inicialmente, o Programa previa 46 milhões de testes, metade de PCR e a outra de testes rápidos. Houve uma dificuldade para implementar os testes de PCR porque não tinha equipamento instalado e preparado para atender uma demanda alta em biologia molecular. Por exemplo, a primeira compra de quase dez milhões foi realizada junto a uma empresa associada nossa, via Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), e ao começar a distribuir pelos laboratórios centrais dos estados, o Ministério enfrentou uma séria de dificuldades com infraestrutura, treinamento de pessoal e problemas para equacionar a velocidade do diagnóstico. Com o aumento da demanda, um resultado de PCR chegou a demorar de 7 a 15 dias para ficar pronto. Isso não adianta.
Labornews – E os testes rápidos?
Carlos Eduardo Gouvêa – O Governo distribuiu para estados e municípios no final de 2021 cerca de 60 milhões de testes. Um volume bom, mas insuficiente. No pico da demanda, de dezembro para cá, ninguém encontrava o teste. Relatório da Abrafarma (Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias) apontou na semana de 17 a 23 de janeiro a quantidade de 740 mil testes realizados em todo o país. Isso somente nas farmácias. Essa demanda é resultado de uma tempestade perfeita: população com uma alta confiança, poucos cuidados e encontros de final de ano e uma nova cepa muito mais infectante combinada com a H3N2. Ou seja, as pessoas ficaram desesperadas porque sabem da importância do diagnóstico preciso e rápido. E percebemos que Governo e iniciativa privada não contavam com o aumento da demanda. Esse fato reduziu os estoques locais dando largada a uma nova corrida para reposição destes, gerando a discussão de uma nova ferramenta que deve fazer parte de iniciativas para o combate e interrupção do ciclo de transmissão, que é o autoteste…
Labornews – …e que agora está sendo discutido pela Anvisa.
Carlos Eduardo Gouvêa – A discussão é que a Anvisa quer entregar uma solução que seja adequada e coerente com a Política Nacional. A RDC 36/15, que regulamenta os testes de diagnósticos no país, prevê que autoteste para doenças as quais possuem alguma situação de infecção, ou que precisam de notificação compulsória – como os casos do HIV e da Covid-19 – precisam fazer parte de um programa de saúde pública e ter uma demanda do gestor principal. Então a Anvisa disse ao Ministério que só iria adiante se fosse provocada.
Labornews – E o Ministério respondeu?
Carlos Eduardo Gouvêa – Mandou uma nota técnica pedindo a avaliação do autoteste, entretanto, a Anvisa respondeu que não estava satisfeita, pois é necessário ter um programa consistente. Em 21 de janeiro, Ministério e Anvisa reuniram-se para dirimir dúvidas. Na terça-feira, 25, saiu um despacho da Secretaria de Combate à Covid-19 do Ministério da Saúde informando como avalia o autoteste dentro da Política Nacional, como ferramenta complementar, e que por isso deve ser distribuído nas farmácias, mas não via SUS, o que é uma pena.
Labornews – Isso é política pública…
Carlos Eduardo Gouvêa – Primeiro, é política pública; segundo, o poder de compra do Estado ajuda muito na escala, pois nosso mercado é muito competitivo. Compras muito grandes, com escalas, permitem uma redução de custo baixando-o no mercado privado. E ainda existe a importância do acesso porque nem todo mundo poderá pagar entre 45 e 70 reais, valores estes que deverão ser os preços de um autoteste.
Labornews – Então estados e municípios poderão entrar no circuito?
Carlos Eduardo Gouvêa – Sim, porque as secretarias estaduais e municipais poderão comprar o autoteste uma vez que o SUS é gerenciado pelas três esferas de poder. Muitos postos de saúde competem à autoridade municipal e o autoteste pode entrar até como ferramenta para tirar a aglomeração do posto, como aconteceu recentemente na Itália, que o distribuiu gratuitamente para a população.
Labornews – Como os laboratórios, hospitais e farmácias estão trabalhando para atender a demanda por testes?
Carlos Eduardo Gouvêa – Assim que percebemos a mudança e a tendência de alta da contaminação, entramos em contato com todas as fábricas mundo afora para alocar a produção para o Brasil. Foi uma briga, mas se mostrou possível. Em janeiro, conseguimos em torno de 12 e 14 milhões de testes no total, entre PCR e testes de antígeno, que devem estar em trânsito. O volume está vindo de forma gradativa, mas à medida que desembarca conseguimos liberar e entregar. Para ser mais célere, a CBDL fez uma reunião com a diretoria da Anvisa criando um canal de atendimento prioritário para todas as licenças de importação que contenham reagentes ou insumos para produção local, ou kits prontos, para a Covid-19. Agora existe uma força-tarefa para começar a liberar de forma muito rápida, possibilitando reabastecer o mercado. Dentro desse contexto, as empresas estão diluindo entre os vários clientes.
Labornews – Em todo território nacional?
Carlos Eduardo Gouvêa – A maioria das empresas procura atender todo o território nacional, mas não tenho como garantir que todas façam, entretanto, existe um entendimento para compartilhar com o país inteiro.
Labornews – Nas próximas duas semanas o mercado estará reabastecido?
Carlos Eduardo Gouvêa – A expectativa é que em fevereiro o mercado seja normalizado, alinhando estoques e demanda, embora a taxa de contaminação ainda esteja elevada. Quanto tempo vai continuar a tendência de alta? Não sabemos, mas infelizmente o grande indicador é o RT (Taxa de Transmissão). Segundo o Imperial College, a taxa no Brasil está em 1.78 – a cada 100 pessoas, 178 pessoas se contaminarão.
Labornews – Por que a Anvisa proibiu a comercialização de um autoteste para o diagnóstico para a Covid 19?
Carlos Eduardo Gouvêa – Nós temos dois casos que saíram na imprensa. Um é o autoteste da Isa Lab recolhido pela Anvisa porque não existe legislação para autoteste de Covid-19. Se não existe, é crime sanitário. O outro produto não é um kit de teste tradicional, mas de coleta. Ele é um dispositivo sem risco para o paciente coletar a saliva e enviar ao laboratório, evitando sair de casa.
Labornews – E esse está autorizado?
Carlos Eduardo Gouvêa – Merece discussão, mas particularmente eu não vejo problema em fazê-lo porque permite maior acesso, relativamente fácil e não traz risco ao consumidor. É um teste que não é de notificação compulsória, mas existe ainda uma necessidade de maior avaliação pela Anvisa.
Labornews – Voltando ao autoteste, a CBDL tem o número de países que já autorizam o uso?
Carlos Eduardo Gouvêa – Não temos o número exato, mas é bem amplo. Já é usado em quase toda a Europa, nos EUA e em partes da Ásia. Até no continente africano já têm países considerando o uso. E o produto chega em boa hora porque atingirá um público que não vem tendo condições de testar de forma adequada, mas lembrando que o autoteste não tira o lugar dos testes de PCR e de antígeno, todavia vai ampliar a base de testagem.
Labornews – O Brasil ainda testa pouco?
Carlos Eduardo Gouvêa – Eu faço parte de um programa da OMS de aceleração para o acesso ao diagnóstico que possui a tendência de incorporar vários países para facilitar e ampliar a testagem. Por exemplo, o Brasil hoje testa per capita metade do que a Argentina; dez vezes menos que os EUA e 21 vezes menos que a Alemanha.
Labornews – E como é o autoteste para Covid-19?
Carlos Eduardo Gouvêa – Ele usa como base o próprio teste rápido de antígeno (uma evolução), só que muito mais amigável. O próprio dispositivo de coleta pode ser diferente e alguns produtos coletam saliva ao invés de amostra nasal. Se for um suave nasal, não entra na nasofaringe. O produto tem algumas facilidades, mas o principal é a comunicação que precisa ser bastante didática, com a utilização de fotos, imagens e até vídeo tutorial na Internet. Dentro da própria embalagem existe a possibilidade de um código QR para acessar o vídeo tutorial. A gente espera que seja bem fácil de ser usado, sem gerar grandes problemas.
Labornews – Como ele funciona na prática?
Carlos Eduardo Gouvêa – É um dispositivo cassete de plástico parecido com o teste rápido. Primeiro, coloca o cassete na mesa junto aos dois tubos, um do reagente e o outro para colocar a amostra, além de um relógio para controlar o tempo. Depois, abre o swab (um cotonete longo e estéril) e coleta a amostra diluindo-a com o reagente. Em seguida, aperta, quebra a haste do swab e coloca-o em uma tampinha. Esta tem um orifício que receberá de 3 a 5 gotas do cassete e a amostra com o reagente vai correr numa fita de nitrocelulose. Caso tenha Covid-19, vai acabar reagindo e marcar a fita do teste.
Labornews – Mesmo negativando, é preciso prudência. Certo?
Carlos Eduardo Gouvêa – Todo e qualquer teste rápido que dê negativo não pode ser considerado uma “certeza”, apesar de ser um bom sinal. Isso porque a pessoa pode estar na chamada “janela imunológica”, que é o período entre a infecção e a carga suficiente de vírus. Nos casos dos testes rápidos e do autoteste, verifica-se o antígeno, uma proteína liberada pelo vírus, e não o DNA ou o RNA, portanto o vírus precisa estar com uma carga viral suficiente para ser pego pelos testes.
Labornews – Qual a probabilidade do diagnóstico ser confiável?
Carlos Eduardo Gouvêa – Os testes rápidos evoluíram muito e hoje são bem confiáveis. Eles têm uma correlação com o PCR muito boa; ou seja, se o autoteste der positivo, é bem provável que PCR também positive. Mas o objetivo dele é sinalizar ao primeiro indicativo de contaminação, fundamental para a pessoa comunicar parentes e amigos que estiveram com ela e permanecer em casa. E caso algum sintoma apareça, procurar imediatamente um posto de saúde para acessar uma terapia adequada.
Labornews – Em breve poderemos fabricar o autoteste no Brasil?
Carlos Eduardo Gouvêa – Existem de 3 a 4 empresas associadas à CBDL que pretendem produzi-lo no Brasil. Elas já possuem protótipos prontos e estão com os dossiês de registros bem avançados. É o tempo de a Anvisa liberar para que a gente consiga produzir localmente.
Labornews – Ele terá um valor de mercado abaixo dos testes tradicionais?
Carlos Eduardo Gouvêa – O autoteste terá um preço mais baixo porque não será embutido o serviço de assistência farmacêutica.
Labornews – As autoridades de saúde receberão esses dados do autoteste para controle da pandemia no país?
Carlos Eduardo Gouvêa – Isso é importante, mas não relevante no momento. Por isso lamentei a semana “perdida” para a avalição do autoteste porque, com RT em 1.78, é urgente e fundamental interromper o ciclo de transmissão. Isso só vai acontecer com ampla testagem, inclusive com o autoteste. Quanto às informações, a Anvisa deverá solicitar às empresas um aplicativo para o cidadão poder disponibilizar os dados, entretanto, é bom lembrar que o autoteste é facultativo, ninguém pode ser obrigado a fazê-lo. Considerando essa premissa, a pessoa poderá reportar em algum tipo de canal fornecido pelas empresas. Como CBDL, estamos discutindo a possibilidade de um app institucional que combinaria esforços de todas as empresas em um local só, uma grande base de dados importantes, quiçá com a participação de outras entidades.
Labornews – Os testes existentes hoje estão preparados para novas cepas que possam surgir? Ou eles terão que se adequar à doença?
Carlos Eduardo Gouvêa – Para as atuais, sim. Para as próximas não tem como garantir. Por isso que é importante testar e tratar, como também é fundamental manter os hábitos de higiene e vacinar. Enquanto tivermos esse bolsão de não vacinados, teremos a possibilidade do surgimento de infinitas novas cepas.